Carta denuncia ação de políticos locais na invasão da TI

Fac-símile de parte da carta de junho de 1992

Dr. Célio Borja
Exmo. Ministro da Justiça
Esplanada dos Ministérios
Brasília - DF

Sr. Sydney Possuelo
Presidente da FUNAI
SEPS - Ed. Lex - 3o.and
Brasília – DF

Exmos. Srs.
Como integrantes do grupo de trabalho instituído pela FUNAI (portaria no. 9, 20/01/92) para fins de identificação da Área Indigena Xavante Marãiwatsédé, vimos informar o que se segue e pedimos providências:

No dia 15 de junho último, recebemos informações provenientes de São Félix do Araguaia (MT) sobre a invasão das terras situadas no interior da Fazenda Suiá-Missu, de propriedade da AGIP DO BRASIL, subsidiária da empresa italiana AGIP PETROLI. Estas invasões se verificaram logo em seguida à declaração do presidente da ENI (controladora da AGIP), Gabriele Cagliari, realizada em entrevista coletiva à imprensa, no Rio de Janeiro, dia 10 de junho último, durante a UNCED 92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento), de que a Fazenda Suiá-Missu seria restituída aos Xavante, seus legítimos donos. Os Xavante foram forçadamente transferidos daquela área em 1966, com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) e dos salesianos, pelos que então se diziam proprietários, para a instalação do empreendimento agropecuário que viria a receber vultosos incentivos através da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

A declaração do presidente da ENI foi feita dois dias após a reunião realizada em Brasília, no gabinete do Consultor Juridico do Ministério da Justiça, Cláudio Fonteles, quando os Xavante de Água Branca entregaram uma carta dirigida à empresa solicitando o retorno imediato à área, para o plantio de roçados, antes mesmo da conclusão do processo de demarcação em curso através da FUNAI. Nesta ocasião, os estudos antropológicos, etno-históricos e cartográficos que comprovam a ocupação tradicional dos Xavante naquela área (concluídos em abril último) foram reconhecidos pela Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça. (Em anexo a carta dos Xavante e a ata da reunião).

Uma primeira denúncia da invasão ocorrida na Fazenda Suiá-Missu / Área Indigena Marãiwatsede foi feita à FUNAI no dia 17 de junho. Acompanhados de uma jornalista italiana, deslocamo-nos em seguida para a área da fazenda a fim de verificar in loco a situação. No entroncamento das rodovias BR-158 e BR-242, numa localidade chamada Posto da Mata, registramos um cartaz fixado à parede daquele posto de gasolina convocando os "posseiros da Suiá" para uma reunião no dia seguinte, 20 de junho às 14 horas, com a presença do prefeito de São Félix do Araguaia, José Antonio de Almeida ("Baú"). A convocação era assinada pelo candidato a prefeito de Alto da Boa Vista, Osmar Kalil Botelho Fo. ("Mazim").

Junto ao cartaz da convocação encontrava-se um mapa da Fazenda Suiá-Missu, onde estavam assinaladas áreas que deveriam ser "respeitadas" (ou seja, não invadidas), mapa este com o timbre do mesmo Osmar Kalil. Coincidentemente, a maior parte destas áreas correspondia àquelas de pastagem e da sede da fazenda que foram excluídas da proposta da área indígena a ser demarcada pela FUNAI. Ou seja, a "área liberada", como se diz na região, corresponde exatamente à proposta da área indígena.

Na reunião de 20 de junho passado, no Posto da Mata (situado no interior da Fazenda Suiá-Missu) tiveram a palavra o candidato à prefeitura de Alto da Boa Vista, Osmar Kalil, o prefeito de São Félix do Araguaia, José Antonio de Almeida, o funcionário do Fórum de São Félix, Filemon Costa Limoeiro, o advogado Ivair Matias e um dos invasores da área. Justificavam a "ocupação" com o argumento de que a fazenda não é mais "produtiva" e, sobretudo, enfatizavam que impediriam o retorno dos Xavante para aquela área, incitando os ouvintes (cerca de 100 pessoas) a uma reação violenta contra os Xavante. Foi mencionado, pelo atual prefeito de São Félix do Araguaia, o apoio do governador do Estado de Mato Grosso, além de uma reunião, havida em São Paulo, com a diretoria da empresa Agip do Brasil, atual proprietária da fazenda.

Conclamavam os participantes a se organizarem (formarem comissões de representantes, etc.), mediante promessas de apoio politico e logístico (abertura de ruas e construção de uma pequena cidade naquele local). Em anexo, encontram-se fotografias que documentam a reunião havida no dia 20 de junho último em Posto da Mata. A gravação em fita cassete e respectiva transcrição serão enviadas em breve.

De acordo os testemunhos recolhidos na ocasião, muitas familias estão sendo deslocadas para o interior da área da Fazenda Suiá-Missu, provindas de localidades próximas (Alto da Boa Vista, São Félix, Porto Alegre do Norte, Alô Brasil) e distantes (Cascalheira, Goiânia), mediante o estimulo à invasão, por parte de políticos locais. Estão sendo repartidos (com piquetes) lotes de 100 hectares para cada família; obtivemos informações destes ocupantes de que já estão no interior da área de mata (reserva florestal da fazenda) cerca de 2000 famílias. No entanto, registramos que comerciantes locais e fazendeiros estão obtendo lotes maiores (1000 - 2000 hectares) em áreas de pastagem no interior da fazenda. Existem ainda informações de que autoridades policiais de São Félix estariam também obtendo lotes nesta "ocupação".

Obtivemos informação de que a invasão está sendo apoiada também pelo atual vice-prefeito de São Félix (e candidato á prefeitura nas próximas eleições), Miguel Milhomem, que teria um acampamento no interior da fazenda, além de Romão Flor, fazendeiro vizinho que adquiriu pelo menos 60 mil hectares de mata (para rápida transformação em pastagem) do grupo Garavelo (a quem 250 mil hectares da Suiá Missu foram vendidos em novembro de 1989), que está fornecendo alimentação (carne bovina) aos invasores - e que teria declarado "não desejar ter os Xavante como vizinhos".

Ao percorrer parte da área invadida ao longo das estradas que cortam a fazenda Suiá-Missu, constatamos que muitos dos invasores portam espingardas e revólveres. De acordo com informações provindas de São Félix, armas e munição vêm sendo fornecidas aos invasores.

Até o presente momento, não se tem noticias relativas a providências para a desintrusão, que deveriam ter sido tomadas por parte da direção da empresa proprietária da fazenda e das autoridades estaduais do Mato Grosso, sobretudo após a declaração do presidente do grupo ENI, referente à intenção de restituir de imediato aos Xavante o seu território tradicional, antes mesmo da conclusão do processo administrativo de demarcação da Área Indígena Marãiwatsédé, pela FUNAI.

Conforme o que pudemos verificar, trata-se indubitavelmente de uma ocupação de má-fé, incentivada e apoiada pelos políticos locais mencionados, que estão se utilizando das necessidades de famílias de trabalhadores rurais, com o objetivo de desestabilizar o quadro social na região, fomentando violência contra o retorno dos Xavante para aquela área.

Solicitamos as autoridades federais que sejam tomadas, em caráter de urgência, todas as medidas necessárias ao desintrusamento e preservação da área, em questão, para que o processo administrativo de demarcação de terra indígena possa ser concluído sem incidentes, de acordo com a legislação atualmente em vigor.

São Paulo, de junho, 1992.

Iara Ferraz
p/ Centro de Trabalho Indigenista

Mariano Mampieri
p/ Campagna Nord/Sud

Sobre

"Marãiwatsédé, terra dos xavante" é um especial multimídia que busca contextualizar e apresentar informações detalhadas sobre o processo de desintrusão da Terra Indígena Marãiwaisédé (MT), do povo Xavante.

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